quinta-feira, 25 de agosto de 2011

VERMUTE - 2º Quadro (de Marcos Salvatore)

Trilha Sonora: O Dizer das coisas, Iva Rothe
In memorian: Perfídia
Peça em um ato e sete quadros

Personagens:
Jacqueline (27 anos) interpretada por um homem
Caio (37 anos) interpretado por uma mulher

2º QUADRO

Cenário: Quarto destruído - uma cama, um criado mudo, um abajur, um aparelho de som, discos em vinil, livros pelo chão, uma privada, uma banheira, um mini bare um penico embaixo da cama.

Entra Caio. Caminha devagar em direção ao mini bar, visivelmente cansado. Suas atitudes transparecem uma angustia interior, uma perturbação exaustiva. Prepara um dry Martini e antes do primeiro gole, dá um suspiro profundo enquanto toca seus lábios sensualmente. Puxa uma cadeira e senta-se em frente a Jaqueline. Olha pra ela com espanto, medo e um pouco de pena. Trágico-humorístico.
CAIO – (puxa um cigarro, acende, dá um trago) Jaque, há quanto tempo estamos casados? (mais um trago sem tirar os olhos da resposta).
JAQUELINE – (serrando as unhas, com graça, feminina, de menina fingida) Sete anos, amor. Sete? (aponta a serrinha para ele, faz um coração no ar, pisca e manda beijinho).
CAIO – Exato. Sete. (levanta-se, mais um trago, suas mãos tremem) Completamos hoje. Estou errado? Não, não estou errado. (contorna a cama, olha para ela de lado) Lembra o que eu te disse ano passado, (pausa cruel) nesta mesma data?
JAQUELINE – (irresponsável) Eu? (naturalidade vulgar) Não, eu não me lembro de nada.
CAIO – (sorriso nervoso) É, Perfeitamente. Foi exatamente isso que você disse ano passado, quando eu fiz a mesma pergunta. (vai até o mini bar pegar mais gelo) Quando te falei pela terceira vez que queria ir embora. (virando-se, toma mais um gole com as mãos tremendo).
JAQUELINE – Me desculpe, amor. Eu ando meio sem noção, sei lá. (aflita) Por um momento achei que você, assim, um bocadinho, não ia mais voltar, (sonhadora) que talvez tivesse sido atropelado, sem identidade, que seria enterrado como indigente e... (romântica) que eu não te veria nunca mais. Não poderia nem velar o corpo antes de te cremar. Tão lindo uma mulher chorar por um marido morto, ninguém sabe se chora de tristeza ou alegria. (volta ao normal e continua a serrar a unha).
Ao ouvir a palavra “morto”, Caio parece se convencer de que deve dizer tudo.
CAIO – (parece não estar certo do que vai dizer) Eu já disse hoje que não te amo mais? Te contei?
JAQUELINE – (para de cuidar das unhas por um segundo interminável, informativa) Pela manhã, enquanto calçava os sapatos. (levanta-se, aproxima-se dele, corajosa) Você parou no pé esquerdo, como sempre, e disse, (ríspida) como sempre: - (imitando voz de homem) “Eu não te amo mais”.
CAIO – (quase gaguejando) E você?
JAQUELINE – (faceira, joga-se na cama, amorosa) Eu ri, como sempre.
Aproxima-se dela como se fosse agredi-la.
CAIO – (desafiador) E se eu te dissesse que é verdade? Que há muito tempo não te amo mais? (contrariado) Naturalmente, o culpado sou eu. (reflexivo) Meu remorso é você. Às vezes acho que não tenho mais coração, nem poder sobre mim. Meu maior medo é descobrir um dia que meu coração é você. (novamente desafiador) O que diria se eu dissesse que vou deixar essa casa ainda hoje? (como se apunhalasse cada palavra) E que acabo de chupar a sua irmã até ela gozar uma, duas, três vezes?
Jaqueline se levanta da cama em direção ao mini bar. Caio a segura pelos ombros, soltando-a em seguida para não deixar o copo cair. Gostaria de ressaltar que os movimentos dos atores devem, obrigatoriamente, entrar em harmonia com suas palavras e entonações com um exagero controlado como o de filmes mudos.
JAQUELINE – (desmascarando-se) Eu diria que você sempre teve um péssimo gosto para mulheres. (tranquilidade neurótica) Ela não vai ser a primeira, nem a última porcaria que você vai comer pela rua. (riso) Cuidado com a indigestão.
Caio dá um murro na porta depois de beber todo o conteúdo do copo, segurando-o com as duas mãos trêmulas.
CAIO – (ameaçador, quase descontrolado) E se eu te desse uma surra? Até te deixar quase morta. Chamaria a polícia? Me deixaria ir embora, ser preso? (caindo em sua mediocridade) Não, isso não. A minha prisão é você: meu inferno, meu castigo. (patético) Mal consigo me olhar num espelho. Eu... já estou preso. (suplicante e agressivo) Por favor, me deixe ir. Não me procure, não me persiga como antes.
Jaqueline olha para ele, muda. Levanta-se, ajeita o sutiã e as alças do vestido. Aproxima-se dele, toca suas sobrancelhas, quase o beijando, mas afasta-se para lhe dar um tapa. Sua fisionomia é de placidez.
JAQUELINE – (com convicção) Nunca! Vai ser assim assado e cozido, meu filho. Você não sabe com quem está mexendo. Do que eu sou capaz. (transitiva) Minha irmã. Eu pedi a ela que te procurasse. (pragmática) Melhor com ela que com uma dessas suas alunas paquitas, tão durinhas, tão bonitinhas, bundudinhas, estilo “ai, motel cinco estrelas, por favor, sim, Bem”. (galhofeira) Vê se te manca, ô, cara.
CAIO – (vitorioso) Eu sei. Ela me disse. (pensativo) Aliás, quanta coisa ela me contou sobre vocês.
JAQUELINE – (perturbada) Não diria. Ela mentiu. (desesperada) O que aquela “peido vivo” disse? Fala, anda! Responde!
CAIO – Como, não? (ágil) Enquanto contava o dinheiro, fez questão de me contar sobre o seu médico. Lembra dele? Te chamava de “Pequena”.
JAQUELINE – (cega, muda, surda) Cala a boca! Cala a boca!
Abraça Caio forte. Ao ouvir o que ele tem a dizer deixa seu corpo cair até o chão, muito devagar, aos seu pés.
CAIO – (ressentido) Me contou que você só gosta de velho. (violento) Sua porca imunda, puta escrota. Chama sua irmã de vagabunda, mas fodia desde os doze com um pedófilo filho da puta. (transpirante) Me contou que ele não queria, que você contou que tinha sido você o tempo todo que insistia, insistia. (com nojo) Que quando ele quis terminar, ficou com medo, você ameaçou contar pra todo mundo e ele meteu uma bala na cabeça.
JAQUELINE – (ondulante) Mentira! Ela é uma mentirosa. Isso nunca. (sonhadora, baixo) Meu doutor. Meu doutor.
Jaqueline joga-se na cama. Toca o próprio corpo com volúpia. Enquanto contempla o abandono de seu marido a demência.
CAIO – (triunfante) Quer saber porque eu bebo? Porque eu não te amo mais? Porque me sinto um verme quando te toco. (ofegante) E dizer isso me dá um alívio, uma coragem de viver na certeza de que vou enlouquecer em breve. (prudente) Então você continuaria amando um homem que te despreza? Que é capaz de dar amor pra qualquer vagabunda, menos pra você?
Caio atravessa o palco, vira-se e aponta para ela. Jaqueline pula da cama e tenta agarrar-se em suas pernas, mas ele foge, com nojo.
JAQUELINE – (ferida) Ainda. Sempre. Te perseguiria se preciso fosse. Seria a sua sombra. (carinhosa) Até você entender que tem que me amar, que é só meu, mesmo não sendo forte, nem generoso – mas franco você é, e as mulheres amam apenas dois tipos de homens: os que gostam de sexo e os que precisam de nutrição e abrigo. Você consegue ser os dois, mesmo sendo um fracassado.
CAIO – (confuso) Mas, por que, criatura? Raciocina. Existem outros velhos por aí. Tem sempre um pau querendo entrar. Até mesmo uma degenerada como você deveria enxergar isso. Eu estou velho, velho. De nada valho pra você.
JAQUELINE – (no limite da loucura) Você não vai me deixar sem nada. Me tirou de casa, larguei faculdade, amigos, briguei com a minha família. Não tenho mais nada na vida. Sem mim você não é nada. Não presta pra nada. (rindo) É um “pomba leza”.
Jaqueline sai pelo palco derrubando coisas. Olha para um punhal de abrir cartas sobre o criado mudo. Olha para Caio e para o punhal diversas vezes.
CAIO – (contraído) Olha pra essa casa. Olha. Não consegue ver? Não enxerga que nem bichos moram assim? A gente se odeia! (lúgubre) Ódio! Não é amor!
JAQUELINE – (ameaçadora) Não vai! Não deixo! Não quero! Te chamo de viado! Minto que é viado! Que só gosta de cu de garotinhos!
Corre até ele e o empurra, duas vezes. Ele a pega pelo pescoço, mas desiste de agredi-la.
CAIO – (amargo) Sua merda! Você não é normal. Não pode ser normal. É louca. Louca!
JAQUELINE – (desafiadora) Que foi? Quer me bater? Vai? Então bate, vem! Não tem coragem? É covarde. Sempre foi, sempre será. As mulheres que você fode sabem que dão o rabo pra um covarde? Me diz, hein?
CAIO – (Exausto) Eu devia te... Não vou bater, não... Não vou dar o que você quer. Estou no limite. Pra mim chega!
Avança para a porta, mas Jaqueline barra-lhe a passagem abrindo os braços. Olhos arregalados, começa a se arranhar e rasgar as próprias roupas.
JAQUELINE – Não, Caio, não! Não me deixa aqui sozinha. Eu tenho medo de ficar sozinha. Olha, escuta, me ouve. Vem.
Agarra seus cabelos e tenta beijá-lo à força Caio desvencilha-se jogando-a na cama em seguida. Subitamente sente uma espécie de loucura erótica invadindo sua alma. Levanta o vestido de Jaqueline, que chora enquanto brinca com os biquinhos dos seios e a chupa com força. Choram juntos enquanto fazem amor com raiva, por trás, com uma intensidade violenta, passional, desesperada.
JAQUELINE – Me bate, Bem! Me bate! Soca amor, soca a tua puta! A tua pequena, doutor!
Enquanto a cavalga agarrado a seus cabelos, de quatro, Caio apanha o pequeno punhal no criado mudo. Arma-se e o levanta o mais alto possível como se fosse apunhalar Jaqueline pelas costas enquanto o brilho de sua lâmina cega seus olhos. Agora aponta a Lâmina para seu próprio coração. Medita enquanto adentra ainda mais em suas ancas. Desiste, deixando o punhal cair lentamente da mão.
CAIO – (desvairado) Suicídio é viver.
Depois de gozar, Caio cai chorando convulsivamente enquanto Jaqueline levanta-se devagar com um sorriso triunfante e insano no rosto. Olha para ele, maravilhada. Enxuga a coriza com as costas da mão. Passa os dedos no esperma que desliza em suas cochas. Chupa os dedos com deleite, depois corre até o mini bar e prepara um dry Martini. Coloca na vitrola a música “O dizer das coisas” e acompanha Iva Rothe, cantando:
JAQUELINE: “... meu coração desanda se você desponta... na esquina da minha alegria faz sol...”. Como no ano passado. Igualzinho, querido. Como sempre.
Fala consigo mesma, enquanto passa os dedos pelos cabelos desgrenhados. Segura o copo com as duas mãos. Olha para os lados, para cima, para baixo. Diz, com um sorriso nervoso:
JAQUELINE – Você é mau pra mim.
CAIO – Monstro!

FIM DO 2º QUADRO

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