domingo, 29 de maio de 2011

Chama (de Marcos Salvatore)

by Andre Kertesz

Meu avô a chamava de Nega, nós de Mãe Vó, alguns de Raimundinha, minha filha de Vó Bisa, seus filhos se dividem entre Mamy, Mamãe, Mãe, Dica e por aí vai.
Me contou um dia que na juventude tinha um namorado em cada canto das festas. Seus irmãos eram músicos ribeirinhos, e um deles, Tio Manél, tem histórias que deixariam Stephen King sem dormir.
De fato, a Dica é de lascar. Lembro dela acordada dois dias e noites seguidos, dançando e cantando, sozinha na sala, me puxando, "O emburrado', pra dançar:
“Tico-tirico-tico
Não tem pé, nem cu, nem bico”.
Ela cantava isso pro meu irmão. Era o rei do seu colo. Grande pintor, um cara inventivo.
(...)
Perdi o raciocínio (se é que o tenho ou tive).
Queria só falar um pouco dela, um pouco deles. Não sabia como, então fui escrevendo, assim como quem se abre para janelas já abertas.
Perguntava o meu nome para a neta: “Como é o nome do teu pai?”
E a Sofia, com aqueles olhos-pra-te-ver-melhor, sempre dizia; até hoje diz: “O nome dele é Marcos”.
Marcos... Pouca pessoas me chamam... de Marcos.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sobre todos os dias (de Marcos Salvatore)

by Alina Senchuk

Meu amor,

O dia é só um detalhe / ele passa e é igual / a outros que a gente já passou / à noite a gente brinca / de se virar pra sempre / brincadeira séria de se amar / calor intenso rolando / a noite inteira / você me vê e eu te acho / se esconda um pouco / pra que eu me perca nos seus braços.

Bliss do fim da tarde (de Marcos Salvatore)

Maurice Jaubert de Becque, aka Maurice D’Attys (1878-1928)

 
Ando feliz e perturbado
contra tudo que não sou
por ter finalmente te encontrado
por ter em troca tudo aquilo que te dou

Ando invocado com o futuro
Com as algemas impróprias do prazer
Que vem da vontade, eu juro
Dessa coisa que é sempre estar com você

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Anorexa, Tu! - 1ª Parte (de Marcos Salvatore)


by Jan Saudek
 EM BELÉM, DEZESSETE HORAS
É o fim da queda. Perseguição vulgar. Três policiais. Acho que matei alguém.
Subo a Riachuelo, dobro para a direita e corro por entre os transeuntes do calçadão da úmida, suada Presidente Vargas, atropelo mulheres e crianças primeiro, depois o Tiozinho do jornal, a Tia do café completo; escorrego num plástico de DVD pirata ao atravessar a Carlos Gomes - o Grand Hotel ficava por aqui. Contemplo os olhares curiosos das moscas enquanto sou linchado pelos taxistas, marreteiros. Não sei porquê, procuro por saias e calcinhas, bucetinhas raspadas (soy infeliz). Delegado Eráclito:
- Fica aí onde tá, moleque. Dispersando, porra! Sargento Aloísio!
- Aqui, doutor.
- Chama aqui o Vila e o Castro e distribui uma porradas da moda pro transeunte que insistir em chegar perto.
- É esse o elemento, Doutor?
- Verei. Mas se correu, deve ter história pra contar.
Doutor Iraque, digo, Eráclito, aproxima-se de mim, olha de cima para baixo meu avesso de gente.
- Não devia ter corrido, cidadão. Acabou pra ti. Pode recolher!
Sou apanhado, levado para a Seccional do Comércio, são e salvo - ainda existem trilhos de bonde por lá; o Cine Palácio foi vendido para uma igreja evangélica; adeus Campina, adeus.
O PARÁGRAFO D
Delegacia. Não sinto os ferimentos, apenas frio. Entram o Delegado e os outros policiais que me trouxeram.
- O negócio é o seguinte, rapaz. Comigo não tem choro, não tem reza, não tem porra nenhuma. Porrada e cadeia existem para o bem da sociedade.
Ele para e sorri, surpreendido consigo. Olha para os outros.
- Anota essa Aloísio. Quero ver o Bocage me chamar de analfabeto de novo. (...) Concordam comigo senhores?
Vila e Aloísio respondem ao mesmo tempo.
- Positivo.
Castro responde enquanto carrega o revolver, alheio.
- A porrada compra até o culpa verdadeira.
Doutor Iraque, digo, Eráclito, pega o telefone e chama dona Zica, a copeira.
- Ô Moabita, chama a dona Zica aqui com o meu remédio e uma água sem gás. Mas escuta, diz pra ela que dessa vez é uma pedra só, ouviu? Que da última vez eu amanheci cagando fino. (...) Bom, como é fim de turno... Vocês bebem o que?
- Uma devassa véu de noiva.
- E uma Devassa aqui pros colaboradores. Quatro copos que o artista vai beber também. (...) Paid’égua essa de cerveja, ainda vejo vocês barrigudos por aí. (...) Quem tem cigarro?
- Serve Derby, “Seu” Iraque?
- Eráclito pequeno, E é Doutor, percebeu? (...) Não fumo mais mata rato. (...) Tá certo. Tua situação é difícil garoto: Fuga, posse de entorpecente, armado e não podemos esquecer, é claro, do tremendo presunto estirado lá na cama. (...) Já foi preso antes, meu filho?
- Não, nunca.
Entra Doutor Bocage, transpirante, visivelmente exausto, enxugando a testa com um lenço Entra acompanhado de sua assistente evangélica, Dona Aldenora.
- Porra Bocage, não vê que eu tô no meio de uma ocorrência importante, um caso sério? (...) E aí, trouxe?
- Com licença excelentíssimo, me permita adentrar na sua investigação para garantir os direitos civis desse nosso candidato a presumido acusado. (...) tá na mão.
- Bom já que é assim. Sente-se, e quem é essa moçoila?
- Ah, é uma menina que eu estou criando pra uma audiência peculiar. Sua religião não permite certos assuntos. Isso decora que é uma beleza: artigos, parágrafos. Parágrafo D, então, essa aqui até ensina.
- É mesmo, é? (...) Daqui a pouco a gente conversa. (...) Porra, Bocage! Tá de sacanagem com a minha pessoa? Aqui não tem nem uma onça, nem uma onça!
CONTINUA...

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Pedras (de Marcos Salvatore)



Naquela manhã eu matei
Um inocente, indefeso animal
À pedradas – quatro, cinco, seis
Descobri o medo desabrochando em mim afinal

Pobre vida sem braços
Com suas minúsculas asas quebradas
Aguardava o golpe final com piados escassos
Tive amor por ele

Era eu quem morria esmagado

Corri dali, eu acho
Depois de anos de fracasso
Aperto as mãos e percebo traços
Das pedras que viraram barro

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Inanimado (de Marcos Salvatore)


Cruzei a ponte
Em minha mente apenas sensações
Nunca ultrapassar horizontes
O logo era ali e milhões

Meu mundo era o desejo eterno
E como eu sabia desejar
Sentia o termo e o medo
Dos olhos dispostos a me colecionar

Voz e Coração (de Marcos Salvatore)

by Mary Ellen Mark

Há tanto tempo
eu sigo te esperando
copo a copo
por que não?


Sou seguidor
de qualquer forma
de calor, de amor,
de tesão


Eu tô aqui
bem antes estive
por ali, por aí
não,


Não me dê
nenhum sermão
que eu ando tudo
eu tô tão


Voz e coração


Por que não?
a noite como
irmã e irmão
no capricho, sem perdão


Num mundo de tudo
de amor de montão
história feita
só de histórias tristes


Mas nem se perca
me dando um sermão
que agora é que eu tô tudo
eu ando tão


Voz e coração.


segunda-feira, 9 de maio de 2011

Evidência (de Marcos Salvatore)

by Hans Bellmer

Não sei o que escrever
Sinto sua falta
E o álcool
sobe sem parar

Você pode estar
A mil quilômetros daqui
Mas eu sei que já andou demais
E pode até duvidar do fim do mistério.

Eu não nego, nem afirmo mais.

Talvez por jogo ou fetiche,
Talvez pelo grotesco do amor remoto
Questão de tempo,
Ou apenas argumento manual.

Que diferença faz a máscara?
Se o que vale é estarmos juntos?
Se o que importa é acreditarmos nisto?


Pra que servem as palavras certas?

Até hoje... outro dia...

Pra quê?


Acreditar:
O código é seu não meu.
O tempo conosco
Se estiver conosco
E a chuva lá fora
Se quisermos ir.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

CAULE (de Marcos Salvatore)

by Aydin Aghdashloo

Voltei a roer as unhas como acessório de tortura despecada. Tenho vícios engraçados: me apaixono por te esperar. Por te encontrar. Não por você. Não existe nós dois. O que se apresenta é alguém ao meu lado. Necessidade básica, elementar, mas muito cara. O que comunica dizer que se persegue um sonho? O prazer não contamina, estamos sós. A dor não contamina, ela é personalizada. Nosso condutor de seivas não sustenta a copa inteira, pesarosa. Estamos enganados, inevitavelmente, quando compactuamos com a pressuposição da potência... só porque sonhamos com a borracha pra apagar as horas e horas de reserva avariada. Já se passaram dois cigarros desde que decidi parar de fumar. Dois ou três goles não são suficientes para embebedar uma idéia obsessiva. Greve de ônibus... chuva de tarde... ruas alagadas... comerciais... e um coração que não para de bater por alguém – não para por ninguém (não para de bater, não para): - “Quer sentar? Quer um café?”; “Pode ficar, se quiser.”; “Do que quer que eu te chame?”; "Quer meu pau? Quer um refrigerante? Conheceço malabarismo com maçãs."; "A genitalidade do amor é tão impessoal, por isso romances, contos, poesia, chá de catuaba, desculpas, perdões, sermões... tudo culpa sua, nunca minha, me tira dessa."  Não deu pra te fazer gozar daquele jeito. Seus preceitos não são meus preceitos. Talvez se você deixasse de lado a mania de perfeição; esse tom barato de cinderela. "Que idéia!!" Isso é tudo: com você, longe de você. Só mesmo a burrice, porque sonhar não é a solução. Mesmo assim... eu te amo. Fica comigo. Foge Comigo. Vem, que no colchão cabem dois corpos, na cozinha tem fogão de duas bocas, geladeira. Banheiro com banheira, pra gente ficar de molho juntos, refogados, entrelaçados. Duas cópias da chave da porta da frente; uma terceira sobressalente, embaixo do tapete. Eu sou o mesmo, venha, sim.


Criado Mudo nº 05 (de Marcos Salvatore)

by Alleman Thomas Michael


Um puta cedo
Um puta sono
Uma puta ressaca
Um puta café requentado
Um puta ônibus lotado
Uma puta BR
Um puta Entroncamento
Uma puta Almirante
Um puta Castelo
Um puta atraso
Uma puta mesa cheio de trabalho
Um puta telefone que não para
Um puta celular que não liga nem recebe
Uma puta caixa de entrada
Uma puta chuva lá fora
Uma puta ligação de uma puta
me leva pro forró?
me leva pro pagode?
baile da saudade?
Puta que o pariu!!!
Onde é que está o meu Rock’n’roll???????

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Cercas da Campina Rara (de Marcos Salvatore)


Como era?
Me diga, me mostre.
Como era aquela música
Que te ouvi cantar um dia?

Que nos escolheu
Se  acolhendo no prado
Como algo concedido
Por inocentes portadores

Ainda ouço a melodia nua
Coincidência repleta de vida
Feita de pedaços de si mesma
Perdida por aí

Ela se foi ou ainda está por vir?
Onde eu estava quando começou?
Em que tom raro posso tocá-la
Com notas fáceis de lembrar?

Sem me machucar na pior dor de seus espinhos

Nasceu de mãos dadas
Com os quartos minguantes sem janela
na cumplicidade do repouso presunçoso
de um coração sobre o outro?

De um homem e uma mulher?
Ou apenas da lembrança
De uma inquieta história de amor?


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