sexta-feira, 29 de abril de 2011

Culminância (de Marcos Salvatore)

by Roy Lichtenstein

Se conheceram num desses bares descolados, cheios de gente antenada, confiante, falante, que só. Um cigarro os ligou: mesma marca despintada. Depois de vários vintes, vários clichês; partiram pra verdade: divórcio, insônia, destempero, solidão, abandono, desespero. É curioso notar como a neura só afeta os não neurados. Os paranoicos assumidos podem se curar em reciprocidade; foi o caso deles. Ninguém nunca os convidava pra sentar, pra conversar. Eram personagens de si mesmos, fantasmas camaradas, sombras sorridentes. A simpatia não é moeda de troca; conclusão deles. Aquele trago os ligou. Depois temos as mãos entrelaçadas: motel baratinho, ali atrás da rodoviária, sem janela, sem ar condicionado, só um vitrô – ficaram olhando os fios elétricos. Depois do lanche, contaram seus trocados pro quarto. Olharam seus corpos: pernas, braços, bundas, seios, genitália desnuda. Depois dos trinta aprendemos a valorizar a voz, perceberam. Fizeram amor tão gostoso, com tanta sacanagem, que deixaram escapar as últimas armas. Palavras. Ah, palavras, sim, deixaram escapar um pouco daquilo ingênuo e doce, porém embrutecido pelo tempo, por todos. Não se pouparam. Há tanto tempo não conversavam com ninguém, que as sílabas se atropelavam, ansiosas que estavam por reconhecimento, compreensão, empatia. Amor de novo. Dessa vez brincaram mais, descobriram mais, sentiram mais, depois choraram abraçados, num choro rude, oprimido, recalcado, arrependido, mas esperançoso. Resistiram. Disseram. Não tinha mais volta. Entraram na van, cochilaram nos ombros um do outro, depois desceram na BR, andaram muitas e muitas quadras mal iluminadas. Ela ficou no portão, esperando que ele prendesse o cachorro. Uma sala, dois quartos, copa, cozinha, banheiro, janelas, pia pra lavar as mãos. Fechou a porta do quarto e antes da primeira de todas as noites, ela disse uma coisa que eles nunca mais esqueceriam:
- Por isso, aqui estamos, depois de tantos finais felizes.



quarta-feira, 27 de abril de 2011

transmissível (de marcos salvatore)



ouça a minha voz
não me julgue desse jeito
estou ai, estou em paz
primeiro pense a meu respeito

eu,
eu mesmo,
e a mim.

tudo é direito

pois tenho quase um coração pra te dar
de um louco apaixonado, migrado
atirando poemas para o ar
num rompante desatinado, errado

por onde eu for
eu vou sozinho
tropeçando, escorregando, me contendo
acompanhando o meu caminho

dia não, dia sim

quase fazendo coisas
que costumava fazer
mala cheia de sonhos
um destino pra oferecer

para alguém como você

nem tudo
nem sempre

eu,
eu mesmo,
e a mim.

pode ser que sim.

há pouco quase pude te tocar
mas o passado ressacou nosso presente
todo encanto é tão difícil de se dar
então me abraça, me flagra, me sente

de cara você pra me apertar o gatilho

quase pra mim, que fiquei só
assim de repente

quase você quando é de noite
pra minha sombra dar um tempo
sempre é tudo tão pequeno
por não ter nada com aquilo

nu de sono e de sonho
noite não, noite sim

eu,
eu mesmo,
e a mim.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

LEPRECHAUN (de Marcos Salvatore)



Absurdética freira.
Reparou? Me aproximo de você.
Não é de propósito. Algo meu quer dominar o mundo.
Apenas não resiste. Não luta por sua binecessidade.
Toma da coragem um só gole.

Mas escuta, não me julgo, nem me iludo
Só seduzo a feiúra, por causa do ouro
do pequeno leprechaun.
Sapateiro da vila. Milagre do Chaco.

Um lado meu diz que os detalhes são irresistivelmente sugestivos à verdade.
Outro lado imagina que seria assim, se acontecesse.
Outro quer estar em ocorrência, em evidência.
Eu quero! Cartazes e orgias com lobas.

Sabe o que é,
apenas mulheres deveriam escrever textos eróticos.
É um direito líquido adquirido.
Deveria ser proibido aos homens, posto que seduz.

Capricho submisso.

Mas afinal, o que trazes pra mim?
O colorido da massa, igrejas envelhecidas por baba da puta?
Só uma mulher pra transformar uma vírgula em exclamação.
Deve. Pode. Tudo.


Eu também notei o seu olhar.

Me parecia ter...
Um brilho diferente dos outros.
Perdão, me esqueci de perguntar:

Você pode ser amada por mim?
Talvez se comunicar, pra variar.
Me usar de outra maneira.
Num mantra involuntário, perene. Cheio de sentimento, de certeza.

Senti sua falta o dia inteiro.
Estou com saudades das suas reticências.
Sonhei com seus olhos, seu endereço
Acordei de madrugada e fiz amor com sua idéia.

Não se desculpe, está tudo bem.
Te socar com força foi bom, me fez sentir melhor a foda.
(aquele pedaço de cereja já deu as caras?)

Sou uma pessoa impressionável, imperdoável

Não posso negar que tinha planos de te ver de novo.
Estamos bem, como sempre estivemos?
Sem comerciais, sem oferecimentos, sem blocos?

Abraços. Tão bom te abraçar.
Não há o que perdoar.

Como é que eu,
que grito a plenos pulmões que a "realidade é o limite",
posso te perdoar por me dizer a verdade?
Quem disse, quem viu, onde estão as provas?

Você me deu paz. Libra de carne do seio.
Preciso parar de voar, preciso pousar.
Abraços. Tão bom ser abraçado.
Fator preponderante, com direito a moedas para o Bom Barqueiro.

Apenas não resisti.
Eu queria mais - estava decidido a te encontrar e te comer muito gostoso,
Uma,
Duas,
Três,
Todas as vezes.

Todas formas pagãs esquecidas pela história antiga
e castradas pelos dois mil anos da igreja, me garantem.
Se o Jesus histórico amou, então somos, estamos, seremos amados.
Positiva e operante, constante ingenuidade moral, inocente.

Meu coração e meu pau sabem
que você é a mulher mais deliciosamente tesuda que poderia existir
pro teatro louco que é o meu sexo.
Tenho fé no seu grelo, mas em todo caso dez Padres Nossos e vinte e sete Aves Marias.

Eu te amo, porra! Pra cacete!

As pessoas me notam. Eu não me sinto bem.
Ando suspirando pelos cantos.
Pareço um filho da puta.
Ontem chorei, foi uma merda.

Um cigarro atrás do outro. Depois outro e mais outro.
Você é três mil punhetas de tudo que eu queria pra mim.
De tudo que eu puder negar, munição delgada,
Fertilizante natural para alquimia de machos e fêmeas.



MINHOCÁRIO (de Marcos Salvatore)

ficou apenas
o que eu pude mensurar
fiz questão
de te moderar no coração

de nunca mais te procurar
tenho medo,
me custa um pouco o destilar
de toda e qualquer sensação

nunca parei pra me tocar
do meu avesso
correndo atrás de arrebatamento
lugar algum pra me passar, me dobrar

ainda sou aquele cara
que um dia te ofereceu invasão?
o seu lobo bem acompanhado
sem atalho pra cruzar?

sinais de substância são comuns?
matéria trivial de todo dia
que de noite entorpecem de assalto o
minhocário inoportuno, casual dos insetos

mas já faz tempo,
ninguém sabe
não dá nem pra imaginar


quarta-feira, 20 de abril de 2011

POR OUTROS OLHOS (de Marcos Salvatore)


Tal como é já passou

E a cada dia,
Em cada distração macia
Por entre os dedos
percebendo pacientes grãos


Em toda sombra inexata
A cada estrada que cruza o meu
Longa Metragem

Lembro de você

Por isso escrevo
Na certeza de que isso te alcance e guarde
A tempo
ainda dentro do que eu sinto

Antes que a anatomia do vício
que vivemos um pro outro
nos torne
apenas mais um adereço

Preso por agulha e linha
entre a alma e o corpo

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Clepsidra (de Marcos Salvatore)



Estou pronto para mais um dia
Depois tarde, noite, madrugada
Sua falta entrecortando
Antes igualdade desigual

Você me acalma danando
Quando me saca melhor do que eu
Sinto a falta de não me entender
Me sair, me sentir, me perder.

Me mancar
E sumir do seu pé
Me mandar
Pegar o beco, sacudir a poeira

É que me deu uma doida
Uma vontade de ficar numa boa
Então cala essa boca e me dá boa sorte

Você um dia encontra o seu norte.

Eu ando longe da cidade
Você não pode por causa da idade
Eu perco tempo dia após dia
Dentro da nossa clepsidra.

andrajos de uma vida baldia

by Peterio

se deixar transparecer
o seu drama, sua comédia, corrente de ar
sem licença para amar pobres esperanças
entrando, tentando causar fingimento

pode se contaminar, sem nome, por elas e eles
acordes e humores, cartas sem entretantos selos
odores humanos, terrenos copulares
vozes e rumores, corações partidos

alguém chorando por falta de liga ou de dose

término do jogo de farsas
num empate desigual, passivo agressivo
w.o. de pernas em fleuma, refletidas
pelo espelho de teto de qualquer luar

vacina elementar da massa sociopática,
mixada na histeria de casa
serena resposta interior de se vestir
roma de calígula, em dezesseis canais

falas dubladas por um louco num tablado
trapezista vil de contos etéreos
de segundas mãos, de intenções
de amores a mil, efêmeros infernos

vá em frente. pode querer, pode falar.
conte comigo pra te dar memória afetiva
fundo eterno para um poço de desejos
maturidade emocional para as asas

versão cuba livre da idade
militância sagaz, roteirizada por mentes insanas
mendigos e putas politizados nas guias
alcoolizados de cultura vazia, baldia, classe mídia

transmissores do câncer da cidade
de circo, de crenças, de filhos e feras
preces para um éden de frases e idéias
doenças venéreas da guerra

que já começou

sexta-feira, 15 de abril de 2011

RISO (de Marcos Salvatore)

by Sara Saudkova

Te observo com meus olhos
Mais castanhos que o costume
de não observar

É que o teu riso me deu sede
E me afogou

Agora estou com fome
Fome de você

Dessa alegria tão sem mim
Tão sem você.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

criado mudo nº 03 (de marcos salvatore)

Pesquisando o universo político brasileiro, "vastos bigodes" antecipa as necessidades do telespectador e traz uma grande novidade para o mercado de audiência: experimente “mídia vacante”, absorvente para adiantados estágios de putrefação moral e cívica.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

LÉU (de Marcos Salvatore)







Aconteceu e eu
Uma vez isso sempre aquilo
Mesmo assim
E procuro pela poesia nervosa
Ela nem nada
Busco os versos da cidade
(Fria e cega puta-rua)
Assim como for
Sua caridade, suas costas
A auréola ao redor do cume dos seus peitos
Boa carne pros meus dentes
Tudo em cima para um brilho no olhar
Refletido num pequeno lago de suor
Da sua avenida principal
(Um coração para encontrar e criar verde)
 Anexos, fluídos corporais
Um pouquinho de amargura
Só pra temperar
(Trânsito seco)
Transas, culpas, desabafos
quitinetes marinhos,
Necrofilia poética
(a rima mais difícil de exumar)
Sob o lençol azul do dia
O amor que eu li, assisti, prometi
Pulsações, transe mediúnico
Partituras ao léu de suas esquinas

by Georges Pichard


sexta-feira, 8 de abril de 2011

MALDADE (de marcos salvatore)

by Duane Michals

Uma vida pode ser trocada
em transações monetárias
em moedas, notas, centavos
michê escroto, barato

que mal dá para um café
que mal dá para um cigarro

Pode-se viver por
uma transa, um momento singular
por um sorriso verdadeiro;
por um encontro, uma esmola;
um trocado que sobrar

que mal dá para um café
que mal dá para um cigarro




quarta-feira, 6 de abril de 2011

BLUES DO DOMINGO (de Marcos Salvatore)

by Grzegorz kmin


Eu hoje resolvi que é domingo
Da janela um céu azul tão por inteiro

Hora de perdoar, fazer amor

A maior praça entra na festa da dor

Me relacionando com as coisas

Testando meu caminho mesquinho
E eu aqui pra agradecer e seguir

Tocando, me roendo por dentro
Todo e qualquer amor
Inacabado, (foi tanto)
Pedaço de inferno sem fim.

Só que o blues é meu amigo
Chora e fede por mim

Faço amor com suas sétimas
Com suas xotas escorregadias

Sobre a guache do nexo
Como um pintor maldito e perplexo


Andrógino bufão escroto
Melado de gala, de porra

Carente de fator e de sexo
De leite morno do peito pegajoso

de qualquer puta velha


Mas isto é apenas o resto
É que ficou na panela
É social, força do hábito justo
Ambientalmente correto

E eu tô sozinho, meu bem


hoje é domingo,
Hoje é domingo, é ninguém
Amanhã também



MELLOTRON (de Marcos Salvatore)

by Francisco Brennand

faz que me nega, mas me dá...
e a carne corre sem pedágio
ou infusão ou Banho-maria,
nem vaga para estacionar

me dá luz e me leva
para o insalubre isolamento compulsório do amor
se eu correr em contra mão
no amor, na tua rua...

me para com um beijo na testa
pra que esperar? pra que festa?
me diz , me diz, me diz
me convence a pegar o beco...

em largo espectro, em gosto de "boceta"
enquanto a gente se ama num devagar divergente
na hora depressa dos bêbados ingênuos
de refinado vinho tônico

extraído de suor choroso, polifônico
prato cheio de imperícia da alma,
quase nada em ginga pura
apenas caldo da calma


terça-feira, 5 de abril de 2011

LARVA (de Marcos Salvatore)


Soldadinho

E a noite leva,
A esperança daqueles que se deixam levar
Você acorda difuso, com cores de um tom de cinza na cabeça

E o dia leva,
Os cinzeiros cheios ainda com chamas acesas.
Sujos de batom barato.

E a tarde leva,
Tudo aquilo que chamamos pelo nome de encontro aos apelidos e gírias

Corrijo o poema nas cordas vocais
Percebendo os erros gramaticais da embriaguez presumida
A liquidez que me deu correnteza
O sexo também

Num balcão de bar, num furacão
Num desabafo de reafirmação
De alguém que não nasceu
Para lutar por lutar


Essa canção
Pode trazer e trará
para os meus braços apertarem
a dona dos primeiros parágrafos


a dona do meu coração

Só me resta prosseguir evitando pisar nos insentos
Cabeça feita, pé no chão
Meu all star pede descanso e eu me sinto inteiro
Por onde passo, em todos os lugares


e lembranças

“pelo menos ela, pelo menos ela veio”
Eu volto, eu agarro, eu dobro do avesso
Eu quero, e procuro o que procurar
Eu amo

em eterna troca de lugar.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

TECIDO (de Marcos Salvatore)


Os dias na praia pareceram baseados fundamentalmente no consumo de almas sãs dentro corpo insanos.
Sei lá o porquê.
Em todo caso, todas as náufragas deveriam ser belas, como ela.




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